quinta-feira, 15 de agosto de 2013

5 ideias (incômodas) sobre a resiliência

Você se considera "resiliente"? Se você anda atento à literatura de psicologia do trabalho ou mesmo à literatura "motivacional" que abarrota as frentes das livrarias de grife, provavelmente a sua resposta será um sonoro "sim", e é mesmo provável que esse "sim" venha acompanhado de um sentimento quase heróico de orgulho da sua auto-imagem, certo? Bem, vamos mostrar aqui cinco pontos de vista incomuns e provavelmente incômodos sobre o "fenômeno" da resiliência, vamos mostrar o que ela é do ponto de vista da sociologia do trabalho e da liderança estratégica. Um aviso aos mais sensíveis: Não será nada "heróico".

Ideia número 1: A resiliência como resposta perversa

Acompanhando os discursos do mundo do trabalho e suas variações nas últimas duas décadas o que se
pode perceber é que, para cada avanço em direção à valorização do ser humano, há uma reação agressiva em direção à valorização do lucro pelo lucro e do ambiente de trabalho como um espaço para a projeção de questões emocionais e psíquicas mal trabalhadas em outros meios e contextos. O mundo do trabalho acaba se mantendo como um espaço para purgarmos nossos demônios particulares, das mais diversas formas. Da mesma forma como o mundo privado pode se tornar, também, um espaço para projetarmos nossas frustrações do trabalho. É um simples deslocamento da energia que não flui numa área para uma outra área onde ela, por algum motivo conjuntural, pode fluir.

Os vocábulos da moda se reestruturam e se adaptam com uma rapidez voraz para esconder o fato simples e claramente visível de que as estruturas básicas de manipulação e controle procuram arduamente se manter intactas. Em 2007 fiz um extenso trabalho sobre o que até então era uma novidade no meio acadêmico brasileiro e na cultura organizacional: o assédio moral.

Uma boa definição de assédi
o moral está na wikipédia: "Assédio moral é a exposição do trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções. São mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e antiéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigidas a um ou mais subordinados, desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização."

A essa época posturas humilhantes e degradantes de chefes sobre seus subordinados começavam a ser criticadas e, quis crer, de forma otimista, um perfil um pouco mais humano e centrado nas relações com o trabalho em si poderia começar a ser valorizado acima e à frente das projeções das frustrações pessoais e psíquicas dos chefes sobre seus subordinados. Cheguei a contabilizar casos em que uma situação de assédio moral foi julgada em favor do assediado em uma grande empresa multinacional. Claro que o assediador foi demitido tão logo tenha gerado ônus financeiro para a empresa.

Eis que então surge a "resiliência", adaptada de um conceito que pertence à física diretamente para o comportamento humano. Aos olhos das relações de poderes entre empregados e empregadores a "resiliência" veio salvar o empregador que assedia moralmente seu empregado operando uma reversão da culpa! Agora, o empregado que não suportar a carga desumana de cobranças, trabalhos, prazos, humilhações e constrangimentos diários não é "resiliente" o suficiente para trabalhar naquela empresa. Percebe a reversão perversa?

Ideia número 2: A resiliência como adaptação superficial

Ao contrário do que lemos nos livros, artigos e manuais de recursos humanos da moda, a "resiliência" não foi um conceito pensado para ser usado em relação a seres humanos. É um conceito da física que significa "propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica" (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa). Parte de um pressuposto que pode ser aplicado a materiais inertes como a madeira, os metais e outros corpos desprovidos de vida, principalmente de vida íntima e psíquica.

Não é porque um superior hierárquico deixou fisicamente de gritar no ouvido de um subalterno que a "pressão" oriunda daquela ação deixou de existir. Pelo contrário, a tendência é a de que ela se repita diversas vezes na forma de lembranças e, se não enfrentadas e ressignificadas de forma ativa ela vai se repetir em pesadelos, atos falhos e outros problemas de ordem psicológica. Seres humanos não são materiais inertes e conceitos da física não se aplicam às questões psíquicas nem à engenharia interna dos conflitos do trabalho.

Talvez alguém, acostumado aos meus textos e íntimo dos meus estudos, vá citar Jung e seu extenso e incrível trabalho correlacionando a alquimia ao processo de individuação. É um desafio interessante e adianto desde já que a alquimia tanto na sua raiz chinesa quanto na sua raiz muçulmana, falava de transformações da matéria, de reestruturação íntima dos metais e correlacionava diversas fases com as fases de maturação da psique do ser humano. É um estudo mais profundo e mais delicado do que simplesmente forçar a resignação e a covardia sob um rótulo de "resiliência" e vender isso como uma grande qualidade, um "santo remédio" para as pressões psicológicas do mundo: "Seja "resiliente", suporte mais! Do contrário você é um fraco, um inútil, um inepto para as exigências do mundo do trabalho!" Percebe a perversidade do pensamento?

Ideia número 3: Você sabe o que é "resilir"?

O interessante das pesquisas em dicionário é que vamos descobrindo novas questões. Logo abaixo do verbete "resiliência", temos o verbete "resilir" que é o verbo que, teoricamente, ligaria o conceito à ação. Pois bem, mais uma vez o Aurélio não deu nenhum respaldo às teorias da "resiliência heróica", aquela que vemos como uma grande qualidade nos best-sellers de recursos humanos e relações de trabalho.

No dicionário o verbete "resilir" significa: "saltar para trás, retirar-se, desdizer-se". Não se parece muito com a leitura positiva que se faz da resiliência, como uma forma heróica de resistência a toda e qualquer pressão seja ela física, psicológica, emocional ou existencial oriunda das relações de trabalho. Me parece mais com covardia e resignação mesmo.

Ideia número 4: A quem interessa a "resiliência" vista como qualidade?

O que me leva a pensar: A quem interessa funcionários covardes demais para processar empresas com políticas internas de assédio moral constante e institucionalizado? A quem interessa que os empregados sejam vítimas de uma tripla perversidade que primeiro os humilha diariamente, depois justifica a humilhação como uma forma de "treinamento da resiliência" dos seus funcionários e, para completar o quadro, chantageia o funcionário que queira lutar pelo seu direito de condições humanas no trabalho com ameaças de que ele será visto como "persona non grata" entre as demais empresas do Mercado caso ele reivindique administrativa ou judicialmente o seu direito de assegurar a sua dignidade pessoal?

Ideia número 5: Você vai resilir ou vai existir?

É preciso compreender que o mundo do trabalho é um mundo político, no sentido estrito do termo, é um mundo onde várias forças estão operando para a consecução de uma causa, seja ela materializada num serviço ou num produto. Claro que o interessante e o ideal é que haja uma co-operação, que todos operem no mesmo sentido, tendo em vista a mesma finalidade básica, mas esse ideal não pode nos cegar para o fato de que esse processo de convivência e co-produção não está isento da possibilidade (comum demais, até) de gerar toda sorte de conflitos que só podem ser eficazmente resolvidos se nenhuma das partes ficar eternamente criando "agendas ocultas" (metas ocultas) completamente alheias à própria finalidade do trabalho, porque dificilmente haverá quem defenda que a meta do trabalho seja destruir a saúde mental, física e emocional do trabalhador.

O que me leva a questionar: você vai resilir ou vai existir?

Por Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA

Criador dos treinamentos:
A Jornada do Herói
A Arte da Guerra Oriental
Métis: Liderança estratégica

4 comentários:

  1. Muito boa reflexão Renato. Pelo viés que aborda a resiliência é óbvio, não só por teu texto, mas pelos exemplos que abundam diariamente, que uma outra forma perversa de explorar as pessoas e deixá-las indefesas está sendo posta em prática, tendo em vista o lucro e metas desumanas em última instância, o que por sua vez, pode mesmo configurar uma nova e derradeira fase de assédio moral.
    Porém ao meu ver, o termo "resiliência" também não precisa ser interpretado ao modo agostiniano, em que palavras seriam etiquetas de coisas ou propriedades de alguma área do saber, de forma que lhe propondo pensá-la também, mais ao modo witgensteiniano, no qual o sentido das palavras dependem do contexto, do uso que delas fazemos, aplicamos e aí teremos o conceito de resiliência também aplicado e útil na psicologia. Neste sentido penso, a capacidade à resiliência pode ser algo bom ou ruim, a depender do caso, da situação, dos agentes envolvidos. Partindo da ótica xamã, o guerreiro também precisa saber lhe dar, precisa saber explorar a resiliência, proporcionando conhecer os limites de si mesmo e de dominá-la, a fim de alcançar sempre maior superação de si mesmo, desde que este exercício esteja compreendido nos limites de um exercício saudável e fortalecedor daquele que o pratica, o que por sua vez pode oferecer excelente oportunidade não só de auto superação, mas de auto conhecimento, desde que este tenha como princípio desta ação a capacidade de escolher passar por isto e não que ele não nos casos em que o mesmo não tenha outra escolha, outra opção e não tenha interesse de passar pelo que em seguida configurará uma forma de humilhação e sujeição a condições e ambientes para o qual não está preparado, podendo daí advir consequência ainda mais negativas à vida deste último indivíduo.
    Como disse, tudo a depender da relação específica que estaríamos a tratar. Não aplicando-se de forma alguma àquele que não tem em mira a busca de virtudes que a resiliência pode oferecer ou mesmo que desconheça este potencial, ou mesmo que não tenha a força/estrutura suficiente para que a experiência, mesmo forçada, lhe ofereça um insight positivo ao próprio aperfeiçoamento e libertação.
    No xamanismo que encontramos por exemplo em Carlos Castañeda (de "A Erva do Diado" e diversos outras obras), existe um conceito que julgo no mínimo interessante. É o do "pequeno tirano". Que pode por sua vez ser por exemplo aquele chefe considerado por todos chato, caxias, cobrador, perfeccionista (mesmo que não seja o melhor exemplo de ser perfeito), que por sua vez oferecerá as condições próprias para se desenvolver diversas virtudes, como por exemplo a coragem, o senso de oportunidade, a astúcia, o controle e a paciência. Como sabemos, nenhuma virtude é alcançada dentro dos limites do confortável e ninguém fica forte sentado no sofá, hehehe. No xamanismo esta "técnica" é chamada de pequeno tirano, tendo em vista que o opressor é apenas alguém que foi utilizada devido ao ambiente propício que oferece ao aprendizado e ampliação das virtudes de guerreiro, e que por sua vez não ganha nada com isso. Isto quando a experiência não se encerra de forma brilhante com um xeque-mate-lição por parte do em tese "explorado".
    Vou ficando por aqui, por enquanto, esperando ajudar a contribuir neste bom exercício de reflexão.
    Forte abraço!!! Tarles

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  2. BOA!! Caí nessa pista em 2010, e comecei a escrever nesse sentido num trabalho que ficou interrompido. Estava "descrevendo a mesma paisagem" em tal medida, que algumas frases deste seu texto até parecem sair da minha própria memória, do momento de redação daquele trabalho inconcluso. Trata-se sem dúvida de uma denúncia fundamental, a ser ressoada!!

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  3. Oi Renato, desculpe-me pela demora na leitura.Bom, sabe que adoro seus textos. Gostei e concordo com tudo. Citar a alquimia de Jung foi primordial e levou-me a uma reflexão que posso passar-lhe como ideia pra novas pesquisas e textos. Quando falou sobre a resiliência no meio acadêmico, me remeteu a lembranças de comportamentos de professores x alunos em sala de aula, que os conduz a um condicionamento de obediência e reprodução e inibe a criação e o pensar. Outro aspecto importante, ao qual me remeti foi a resiliência no âmbito familiar, também muito comum e causa danos comportamentais gravíssimos na psiquê dos indivíduos e influencia diretamente em seus comportamentos social e emocional, seja com amigos, trabalho, estudos e relações íntimas. Tema importantíssimo, que creio caber muita pesquisa e reflexão e base pra muitos debates. Parabéns por mais um texto excelente e que incomodam os que querem impedir a função principal do cérebro humano: raciocinar e pensar. rs... Como disse antes, continue fora de moda (como julgam alguns): "pensando". Nessa, eu acompanho você, sem medo de ser chamada de brega. Pensar é um mal que me assola e eu não abandono. rs. Beijos

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  4. Se me vir de cara inchada no metrô da Carioca, é porque transbordei.

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