quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Criar-se e recriar-se, eis a Jornada do Herói.

Em 1849, Auster Henry Layard, um arqueólogo e historiador inglês, encontrou em Nívive (Atual Mossul, Iraque), nas escavações das ruínas da biblioteca de Assurbanipal, sete tábuas de argila com cerca de mil parágrafos em babilônio antigo. Cada parágrafo contava  de 115 a 170 linhas de texto corrido. A forma como o texto foi encontrado indica que ele teria sido usado em um ritual, estudiosos supoem que durante a passagem do ano novo babilônico. Segundo arqueólogos, antropólogos e historiadores da religião, a composição original do texto remonta a algo entre 18 e 16 séculos antes de Cristo.


Seguem-se suas primeiras linhas e a tradução:
e-nu-ma e-liš la na-bu-ú šá-ma-mu
šap-liš am-ma-tum šu-ma la zak-rat
ZU.AB-ma reš-tu-ú za-ru-šu-un
mu-um-mu ti-amat mu-al-li-da-at gim-ri-šú-un
A.MEŠ-šú-nu iš-te-niš i-ḫi-qu-ú-šú-un
gi-pa-ra la ki-is-su-ru su-sa-a la she-'u-ú
e-nu-ma dingir dingir la šu-pu-u ma-na-ma  

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“Quando no alto não se nomeava o céu,
e em baixo a terra não tinha nome,
do oceano primordial (Apsu), seu pai;
e da tumultuosa Tiamat, a mãe de todos,
suas águas se fundiam numa,
e nenhum campo estava formado, nem pântanos eram vistos;
quando nenhum dos deuses tinha sido chamado a existência,



Em Babilônia, o Enuma elish era recitado no templo, por ocasião do quarto dia da festa de ano novo. Essa festa, denominada Zagmuk ("começo do ano") em sumério e Akitu em acadiano, era comemorada nos primeiros 12 dias do mês de Nisan. A epopéia apresenta diversas sequências, sendo que somente nos importam as seguintes:

1) Dia da expiação para o rei, correspondente ao cativeiro de Marduk
2) Libertação de Marduk
3) Combates rituais e processão triunfal, sob a direção do rei, no Bit Akitu (a casa da festa do ano novo), onde se realiza um banquete.
4) O hieros gamos (casamento sagrado) do rei com uma hierodula que personifica a deusa.
5) A determinação dos destinos pelos deuses.

O rito no santuário de Marduk
A primeira seqüência dessa encenação mítico-ritual - a humilhação do rei e o cativeiro de Marduk - assinala a regressão do mundo ao caos pré-cosmológico (regressão a um estado anterior à ordem). No santuário de Marduk, o sumo-sacerdote despojava o rei de seus emblemas (o cetro, o anel, a cimitarra e a coroa) e batia-lhe no rosto. Depois, ajoelhado, o rei pronunciava uma declaração de inocência: "Não pequei, ó senhor das terras, não fui negligente para com a tua divindade." O sumo sacerdote respondia em nome de Marduk: "Não receies, ...Marduk ouvirá a tua prece. Ele ampliará o teu império..."

O mito do retorno de Marduk, ascensão do rei
Durante esse tempo o povo procurava Marduk, que, segundo se julgava, estava "preso na montanha", expressão indicadora  da "morte" de uma divindade. Marduk foi forçado a "descer longe do sol e da luz". Finalmente ele consegue libertar-se, e os deuses se reúnem (isto é, tinham as estátuas reunidas) para determinar os destinos. Esse episódio corresponde, no Enuma Elish à promoção de Marduk a deus supremo. O último ato consistia na "determinação dos destinos" de cada mês do ano. Ao ser "determinado" o ano era ritualmente criado, isto é, garantiam-se a boa sorte, a fertilidade e a riqueza do novo mundo que acabava de nascer. O costume de "fixar os destinos" dos doze meses vindouros durante os doze dias intercalares ainda subsiste no Oriente Médio e na Europa oriental.

Criar-se e recriar-se, eis a Jornada do Herói
O que significam, para nós, cada uma dessas fases? A expiação do Rei, a libertação de Marduk, os combates rituais, o casamento sagrado e a determinação do destino dos doze meses?

Nunca buscamos organizar nossas metas de vida ou mesmo nosso cotidiano se ele nos parece organizado. Buscamos essa reestruturação quando percebemos que algo não está bem. A palavra organizado vem da mesma área semântica que órgão, órgãos, organismo. Uma coisa está "organizada" quando está operando corretamente dentro de um sistema no qual está inserida, quando os fluxos que passam por ela passam corretamente, sem acelerações ou paradas bruscas, aproveitando Lavoisier com o perdão ou bênção dos químicos, quando nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma.

O rei está nú
Só buscamos recriar a ordem quando a ordem anterior, por algum motivo, não está bem estruturada. Quando algo não vai bem. Então a própria busca por uma recriação da nossa ordem interna exige que repensemos e desconstruamos a imagem que temos da ordem. A grande imagem da ordem dentro de um sistema é o rei. Então despojamos o rei de seus atributos, o cetro - representação do eixo e da unidade do reinado, a grande viga-mestra da construção anterior - , o anel - representação do laço que une o rei ao seu território, representação das fronteiras daquela ordem, todas ocupadas pela presença do rei - , a cimitarra - representação do poder policial do rei, de sua capacidade de cortar, de dar limites, de estabelecer a ordem e determinar o que é possível e o que não é -  e, por último, a coroa - representação de sua iluminaçào divina já que as coroas foram criadas como uma espécie de "halo" por onde a inspiração divina deveria fluir dos céus até a figura do rei. Despojado disso tudo, o rei não é mais que um humano entre outros, passível de todas as falhas, mortal.

Quando necessitamos reconstruir alguma ordem interna, no nosso mundo, devemos observar bem até que ponto nossa imagem de nós mesmos vai ser recriada com essa atitude, quem nos tornaremos após o processo. É preciso se apaixonar pelo devir, por aquilo que ainda nos tornaremos.

A libertação de Marduk
Marduk então fica sendo o entusiasmo do sujeito que pretende voltar a ser rei. Entusiasmo é uma palavra grega que vem de en (dentro) théos (deus). Quando estamos entusiasmados temos deuses dentro de nós. É o segundo passo para a criação de uma nova ordem! Libertar nosso "Marduk" interior.

Marduk mata Tiamat
Os combates rituais
"A grande batalha se travará na mente, é lá que temos de matar o padre e o rei."
Os combates rituais se operarão em nossas mentes entre Marduk e todas as forças retrógradas que obedeciam à velha ordem em decomposição. Combater os pequenos ou grandes "monstros" para estabelecer a nova ordem interna nada mais é do que combater nossas pequenas ou grandes resistências internas, oriundas do nosso costume em viver a ordem anterior. Somente combatendo diretamente essas resistências seremos capazes de espatelecer a nova ordem.

O Hierogamos - casamento sagrado - elencar a intenção positiva
Todas essas resistências internas, grandes e pequenas, têm, cada uma, sua intenção positiva. Elas querem algum "conforto", "saciedade", "alimento", "afeto", "segurança" ou outras questões das quais não poderemos abrir mão. É esse o momento em que, por exemplo, Hércules pega a pele do leão de Neméia e veste-se com ela, para aproveitar sua invulnerabilidade. O "casamento sagrado" nada mais é do que admitir que haviam intenções positivas na velha ordem a serem salvaguardadas na nova. É identificar o que a Programação Neurolingüística chama de "intenção positiva" e adequá-la à nova realidade que está sendo criada.

A determinação dos destinos
O que é "determinar um destino" senão planejar, estruturar tarefas hierarquizadas para a ação prática sobre valores bem conhecidos com o foco bem direcionado à nossa meta maior? Determinar os destinos não é "adivinhar" o futuro, mas plantá-lo, planejá-lo, vislumbrá-lo e caminhar em direção a ele, à medida que os sons, cheiros e gostos dele forem se tornando mais e mais intensos até que seu projeto se torne sua realidade. É disso que se trata A Jornada do Herói.

Texto: Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
Criador e palestrante do curso A Jornada do Herói ®
Todos os direitos Reservados
ISBN 384.615 livro 714 folha 275
Biblioteca Nacional, Escritório de Direitos Autorais

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Liderando o Jardim Interior

“Um artista da guerra, nada mais é do que um artista do conflito. Aquele que manipula o conflito retirando dele soluções, idéias criativas, saídas inesperadas, úteis e principalmente, tendo conseguido seu objetivo inicial, que está sempre para além do conflito.” – Renato Kress

Enquanto estudava para criar meu curso A Arte da Guerra Oriental interessei-me profundamente sobre a razão que levaria os poderosos samurais, guerreiros lendários, líderes agrários e defensores dos valores de disciplina, lealdade e habilidade marcial a se interessarem pelo ikebana, a arte floral de arranjos destinados à figura religiosa de Buda. O que levaria especialistas na arte da morte, na evolução pessoal pela espada, a dedicarem tempo e esforço a uma planta em miniatura?

É uma dúvida compreensível dentro de nossa mentalidade ocidental. Nossa socialização imersa nos valores judaico-cristãos tende a fazer uma divisão, uma ruptura, entre a divindade e a natureza, entre a matéria e o divino. Muito desse menosprezo é responsável tanto por nossos avanços tecnológicos quanto pela situação de degradação de nosso meio ambiente. Quando pensamos sobre nosso desenvolvimento espeiritual ou sobre nosso desenvolvimento intelectual tendemos a fazê-lo desconsiderando os aspectos materiais, desconsiderando o fato de que somos feitos de matéria e é através da matéria que expressamos nossos mais sublimes pensamentos, desejos, sentimentos.

Um golpe
O samurai se interessa pelo ikebana, pelos arranjos florais e pela arte do bonsai por uma razão eminentemente prática: Sua conduta marcial obriga-o a eliminar seu oponente da forma mais "limpa" possível, preferencialmente com apenas um golpe. 

Se dois samurais pretendem, cada um, eliminar seu oponente com apenas um movimento de espada, é necessário, antes de tudo, que ele possa antever os movimentos de seu oponente. Antever os movimentos de seu oponente implica em observar a veia em suas têmporas, o sangue que irriga as costas de suas mãos ao pressionarem o cabo da espada antes que o golpe seja deferido. Se um indivíduo consegue ver a seiva passando por dentro de um bonsai, se consegue antever os movimentos do tropismo de uma árvore em miniatura, ele tem essasensibilidade, essa espécie de filigrana sensorial capaz de perceber seu oponente e atacar no momento exato. 

Nosso Jardim
O quanto somos capazes de observar a nós mesmos? O quanto somos capazes de respeitar nossos pedidos internos de descanso, de aventura, de convívio familiar, de alimentação regrada? Quando adoecemos com frequência ou não conseguimos nos concentrar o suficiente para achar a solução de um problema, é nosso jardim interior implorando por podas. Podar é focar nosso crescimento. 

Podar e crescer
Meu conhecimento sobre biologia é bem limitado, mas quando penso sobre estruturas vivas na natureza que crescem da mesma forma para todos os lados desordenadamente logo me vêem à mente os fungos e os cânceres. Nenhum dos dois me inspira grande confiança. Nosso crescimento, para que seja impactante, precisa focar, ter uma meta e um componente valorativo - emocional - que nos impulsione em direção a ela. Portanto poda é foco. Podar é direcionar o processo de crescimento em prol de uma finalidade, com um propósito bem definido. Liderar, muitas vezes, requer podar, eliminar crescimentos alheios à meta estabelecida, cercear perdas de energia e tempos ociosos, direcionar ação, disciplina e atenção sobre um único processo até que ele esteja finalizado.

Controle
Liderar, portanto, exige controle. Samurais controlam sua respiração, seus batimentos, seus movimentos internos e, concomitantemente, os movimentos internos de seus adversários, é uma luta sublime. Não é de se admirar que Musashi, o maior espadachim histórico de que se tem notícia, compreendesse sua evolução espiritual como o kendô, o "caminho da espada". 

Todos os processos da vida implicam movimento, sair de um estado e entrar em outro. Quando lideramos lideramos um corpo em um processo. Pode ser nosso corpo pessoal ou um corpo formado por vários indivíduos, uma corporação, mas estamos sempre em um processo, uma caminhada. É impossível liderar sem foco e o foco nos impossibilita liderar parados. Liderança é movimento e a essência desse movimento, muitas vezes, pode estar contida num único golpe, que o oponente não pode, nunca, antever.


Texto: Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA