quinta-feira, 15 de agosto de 2013

5 ideias (incômodas) sobre a resiliência

Você se considera "resiliente"? Se você anda atento à literatura de psicologia do trabalho ou mesmo à literatura "motivacional" que abarrota as frentes das livrarias de grife, provavelmente a sua resposta será um sonoro "sim", e é mesmo provável que esse "sim" venha acompanhado de um sentimento quase heróico de orgulho da sua auto-imagem, certo? Bem, vamos mostrar aqui cinco pontos de vista incomuns e provavelmente incômodos sobre o "fenômeno" da resiliência, vamos mostrar o que ela é do ponto de vista da sociologia do trabalho e da liderança estratégica. Um aviso aos mais sensíveis: Não será nada "heróico".

Ideia número 1: A resiliência como resposta perversa

Acompanhando os discursos do mundo do trabalho e suas variações nas últimas duas décadas o que se
pode perceber é que, para cada avanço em direção à valorização do ser humano, há uma reação agressiva em direção à valorização do lucro pelo lucro e do ambiente de trabalho como um espaço para a projeção de questões emocionais e psíquicas mal trabalhadas em outros meios e contextos. O mundo do trabalho acaba se mantendo como um espaço para purgarmos nossos demônios particulares, das mais diversas formas. Da mesma forma como o mundo privado pode se tornar, também, um espaço para projetarmos nossas frustrações do trabalho. É um simples deslocamento da energia que não flui numa área para uma outra área onde ela, por algum motivo conjuntural, pode fluir.

Os vocábulos da moda se reestruturam e se adaptam com uma rapidez voraz para esconder o fato simples e claramente visível de que as estruturas básicas de manipulação e controle procuram arduamente se manter intactas. Em 2007 fiz um extenso trabalho sobre o que até então era uma novidade no meio acadêmico brasileiro e na cultura organizacional: o assédio moral.

Uma boa definição de assédi
o moral está na wikipédia: "Assédio moral é a exposição do trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções. São mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e antiéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigidas a um ou mais subordinados, desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização."

A essa época posturas humilhantes e degradantes de chefes sobre seus subordinados começavam a ser criticadas e, quis crer, de forma otimista, um perfil um pouco mais humano e centrado nas relações com o trabalho em si poderia começar a ser valorizado acima e à frente das projeções das frustrações pessoais e psíquicas dos chefes sobre seus subordinados. Cheguei a contabilizar casos em que uma situação de assédio moral foi julgada em favor do assediado em uma grande empresa multinacional. Claro que o assediador foi demitido tão logo tenha gerado ônus financeiro para a empresa.

Eis que então surge a "resiliência", adaptada de um conceito que pertence à física diretamente para o comportamento humano. Aos olhos das relações de poderes entre empregados e empregadores a "resiliência" veio salvar o empregador que assedia moralmente seu empregado operando uma reversão da culpa! Agora, o empregado que não suportar a carga desumana de cobranças, trabalhos, prazos, humilhações e constrangimentos diários não é "resiliente" o suficiente para trabalhar naquela empresa. Percebe a reversão perversa?

Ideia número 2: A resiliência como adaptação superficial

Ao contrário do que lemos nos livros, artigos e manuais de recursos humanos da moda, a "resiliência" não foi um conceito pensado para ser usado em relação a seres humanos. É um conceito da física que significa "propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica" (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa). Parte de um pressuposto que pode ser aplicado a materiais inertes como a madeira, os metais e outros corpos desprovidos de vida, principalmente de vida íntima e psíquica.

Não é porque um superior hierárquico deixou fisicamente de gritar no ouvido de um subalterno que a "pressão" oriunda daquela ação deixou de existir. Pelo contrário, a tendência é a de que ela se repita diversas vezes na forma de lembranças e, se não enfrentadas e ressignificadas de forma ativa ela vai se repetir em pesadelos, atos falhos e outros problemas de ordem psicológica. Seres humanos não são materiais inertes e conceitos da física não se aplicam às questões psíquicas nem à engenharia interna dos conflitos do trabalho.

Talvez alguém, acostumado aos meus textos e íntimo dos meus estudos, vá citar Jung e seu extenso e incrível trabalho correlacionando a alquimia ao processo de individuação. É um desafio interessante e adianto desde já que a alquimia tanto na sua raiz chinesa quanto na sua raiz muçulmana, falava de transformações da matéria, de reestruturação íntima dos metais e correlacionava diversas fases com as fases de maturação da psique do ser humano. É um estudo mais profundo e mais delicado do que simplesmente forçar a resignação e a covardia sob um rótulo de "resiliência" e vender isso como uma grande qualidade, um "santo remédio" para as pressões psicológicas do mundo: "Seja "resiliente", suporte mais! Do contrário você é um fraco, um inútil, um inepto para as exigências do mundo do trabalho!" Percebe a perversidade do pensamento?

Ideia número 3: Você sabe o que é "resilir"?

O interessante das pesquisas em dicionário é que vamos descobrindo novas questões. Logo abaixo do verbete "resiliência", temos o verbete "resilir" que é o verbo que, teoricamente, ligaria o conceito à ação. Pois bem, mais uma vez o Aurélio não deu nenhum respaldo às teorias da "resiliência heróica", aquela que vemos como uma grande qualidade nos best-sellers de recursos humanos e relações de trabalho.

No dicionário o verbete "resilir" significa: "saltar para trás, retirar-se, desdizer-se". Não se parece muito com a leitura positiva que se faz da resiliência, como uma forma heróica de resistência a toda e qualquer pressão seja ela física, psicológica, emocional ou existencial oriunda das relações de trabalho. Me parece mais com covardia e resignação mesmo.

Ideia número 4: A quem interessa a "resiliência" vista como qualidade?

O que me leva a pensar: A quem interessa funcionários covardes demais para processar empresas com políticas internas de assédio moral constante e institucionalizado? A quem interessa que os empregados sejam vítimas de uma tripla perversidade que primeiro os humilha diariamente, depois justifica a humilhação como uma forma de "treinamento da resiliência" dos seus funcionários e, para completar o quadro, chantageia o funcionário que queira lutar pelo seu direito de condições humanas no trabalho com ameaças de que ele será visto como "persona non grata" entre as demais empresas do Mercado caso ele reivindique administrativa ou judicialmente o seu direito de assegurar a sua dignidade pessoal?

Ideia número 5: Você vai resilir ou vai existir?

É preciso compreender que o mundo do trabalho é um mundo político, no sentido estrito do termo, é um mundo onde várias forças estão operando para a consecução de uma causa, seja ela materializada num serviço ou num produto. Claro que o interessante e o ideal é que haja uma co-operação, que todos operem no mesmo sentido, tendo em vista a mesma finalidade básica, mas esse ideal não pode nos cegar para o fato de que esse processo de convivência e co-produção não está isento da possibilidade (comum demais, até) de gerar toda sorte de conflitos que só podem ser eficazmente resolvidos se nenhuma das partes ficar eternamente criando "agendas ocultas" (metas ocultas) completamente alheias à própria finalidade do trabalho, porque dificilmente haverá quem defenda que a meta do trabalho seja destruir a saúde mental, física e emocional do trabalhador.

O que me leva a questionar: você vai resilir ou vai existir?

Por Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA

Criador dos treinamentos:
A Jornada do Herói
A Arte da Guerra Oriental
Métis: Liderança estratégica

quarta-feira, 3 de julho de 2013

A dinâmica do Caos


Os gritos e os silêncios

Tenho observado com atenção a dificuldade do meio acadêmico em geral em lidar com os fenômenos sociais contemporâneos. Sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, filósofos, historiadores, geógrafos, psicólogos sociais, todos parecem ter uma reticência enorme em relação às manifestações que tomaram conta de vários países ao redor do mundo. Viciados que estão em rotular, analisar e tentar, por esses processos, adquirir alguma forma de controle sobre os fatos sociais, grande parte do universo acadêmico se vê perdido, sem referenciais, sem perspectiva diante do que, quando muito, identificam com o "caos". A academia se estruturou para analisar a ordem criando novas ordens e relegou como párias a maior parte dos que se esmiuçaram no estudo do caos. Seria preciso um especialista no caos para analisar certas perspectivas que se abrem a nossa frente nesse momento. Como não conheço nenhum, recorro às imagens de "caos" que conheço através das diversas mitologias do mundo em busca de possibilidades e padrões. Descortinam-se horizontes interessantes para os nossos próximos dias.


Em toda parte, em todo tempo, as mais diversas ordens vieram do caos


"E o espírito de Deus se movia sobre a face das águas" - Gênesis 1:1, Bíblia
No mito de criação egípcio (aproximadamente 2600a.C.), antes dos deuses passarem a existir havia apenas um abismo escuro e aquoso chamado Nun. Na mitologia mais antiga de que temos notícia, a Suméria (aproximadamente 5300a.C), a criação e o panteão surgiram pacificamente do mar original, também conhecido como a deusa Namu. Na Pérsia (atual Irã) o caos primordial era associado a Angra Mainyu dois mil anos antes da Era Cristã. Nos textos sagrados indianos (Brahmanas, Puranas e no Mahabharata) uma das mais antigas versões para o nascimento do universo é o movimento que duas castas de seres celestiais fazem sobre o oceano cósmico, identificado com o caos primordial.

Havia algo sobre o qual o todo-poderoso criador da ordem semita caminhava, "as águas". Antes da existência dos diversos panteões egípcios, havia também algo descrito como "aquoso", talvez da mesma natureza que o "mar primordial" dos sumérios, algo "líquido e indefinido" que, posteriormente, foi identificado, pelos novos criadores da ordem na Pérsia, como negativo, como o mal absoluto. Outros povos, entre eles os indianos, descobriram que essa "grande massa aquosa" poderia ser, também, uma fonte de ordem. O movimento do caos teria a potência criadora da ordem. Esse é um dos pontos principais do "caos primordial": ele pode tudo, inclusive gerar uma nova ordem!



O vazio: o eco que encontra o oco

Muitos tentam identificar um enorme vazio nesses movimentos, um vazio de perspectivas, um vazio de requisições, um vazio político gerado pela descrença estrutural na nossa cultura política contemporânea. De alguma forma está patente que o sistema de representatividade política têm se entrincheirado para representar politicamente (nos jogos de interesses e necessidades que compõem a política em todos os tempos e em todos os lugares) aos grupos que melhor se organizam em prol dos seus interesses, sejam eles legítimos ou ilegítimos. Ocorre que os grupos mais bem organizados acabam formando pequenas máfias que controlam seus "nichos" de mercado através do financiamento e da compra direta ou indireta de agentes do poder público nos mais variados graus hierárquicos. É a cultura política da corrupção. Que vem se tornando cada vez menos “corrupta” e cada vez mais estrutural. Explico.


É preciso corromper o corrupto, trapacear o trapaceiro


Para que haja corrupção é necessário que alguém se "corrompa", que possua um caráter específico que tenha sido deturpado por um processo consciente de escolhas em prol de um interesse diverso do interesse que originalmente o caracterizava. Para que um governante ou um funcionário público sejam corrompidos é necessário que ele estabeleça um compromisso e o desonre ao longo de sua atuação. Não é o que temos hoje em dia.

O que temos hoje em dia são homens públicos - eleitos supostamente pelo povo, já que estar em um cargo político não é ser um líder ou representante do povo, mas sim ser o vencedor de uma disputa de interesses que aconteceu dentro de um partido, um grupo seleto, que escolheu, segundo seus interesses privados, os candidatos que nós votaremos - comprometidos exclusivamente com interesses privados desde antes de suas eleições enquanto homens públicos.

Os grupos de interesse privado têm se apropriado constantemente dos cargos públicos, colocando neles seus representantes diretos. Não sei até que ponto o homem no cargo é, pessoalmente, corrupto ou o homem, por sua ação comprometida com os financiadores de sua campanha, corrompe o cargo que, por definição, trata da gestão dos bens, decisões e finanças públicas e não privadas. Temos visto defensores de interesses privados se apropriando claramente de cargos públicos, corrompendo a lógica desses cargos enquanto honram com seus compromissos pessoais e seus interesses particulares. Parte desse movimento caótico nas ruas está direta ou indiretamente ligado a romper essa cadeia por um segundo movimento, também natural, da dinâmica do caos: a aparição luz.


Tudo junto e misturado

O caos - que é o que genial, perversa e maravilhosamente temos nas ruas hoje em dia - não é só o vazio.  Ele é a potencialidade de tudo! Inclusive do vazio! Através do posicionamento da população nas ruas a situação política dos países atingidos por esse "caos" pode piorar muito com a ascensão ao poder de grupos extremistas - lembrando que no espectro da política os extremos de direita e esquerda se tocam no horizonte -, pode melhorar muito - observando o acréscimo intenso de consciência, interesse e preocupação política que a disseminação de informações pela via virtual tem gerado – ou pode não dar em nada - reestruturando uma mudança superficial que acalmará as águas no caldeirão em ebulição, pelo menos por um tempo. Esse é o caldeirão contemporâneo, o estado de ebulição primevo e origem de tudo o que há e haverá, de todas as potencialidades. Pode ser o vazio sim! Pode ser qualquer coisa!


Perspectivas do caos
"O inferno são os outros" - Jean Paul Sartre

Em termos políticos, policiais e acadêmicos o caos é identificado como tudo aquilo que eu não controlo. Tudo o que foge do meu controle é caótico e, observando as histórias das religiões e mitologias pelo mundo,  tudo o que é caótico acaba sendo identificado como "negativo", "cruel", "perverso" etc e implica numa postura agressiva em busca de retomar o controle da ordem anterior. Em certo ponto essa análise natural para quem se coloca da perspectiva da "ordem" está muito certa. Afinal de contas, se considerarmos a passagem do tempo e as mudanças sociais que inevitavelmente ocorrem e ocorrerão em todas as ordens constituídas, para quem está se identificando com a ordem anterior a nova ordem que tenta se impor é sim negativa - na medida em que nega partes importantes da ordem até então dominante -, é sim cruel - porque pauta-se por um sistema de valores diferente do até então vigente - e é também perverso - porque tenta perverter um sistema cultural para que se reestruture sobre novos padrões.

Mas o que há de mal em perverter um sistema pervertido?


Dilúvios e recomeços

Excluir é dividir. A divisão faz parte tanto do processo de concentração de energia (foco) quanto do processo de alienação (dispersão) das partes que não foram salvas ao longo dessa exclusão. A atenção humana é assim e também os nossos processos criativos, sejam eles pessoais, culturais ou sociais A arca de Noé, por exemplo, levou tudo o que queria salvar do dilúvio universal, a arca de Utnapishim na Suméria fez o mesmo. Aliás, todas as mais de um milhão de narrativas sobre o dilúvio entre os povos assírios, americanos, asiáticos, armênios, egípcios e persas tiveram uma arca, baú ou recipiente fantástico onde couberam as causas e questões que seriam levadas adiante.  


Navegar é preciso

Vejo no mar primevo das manifestações muitas arcas, muitas causas querendo ser salvas, querendo sobreviver a esse gigantesco tsunami humano de reivindicações, gostos, desejos, representações, preferências e exigências. Aí é que está a beleza: Não temos, individualmente, como determinar o fim último das manifestações como um todo. O que podemos fazer é abdicar do controle ilusório que a análise dos movimentos nos possibilitaria e buscar a nossa arca, a nossa ínfima possibilidade de representação e influência! É preciso antes de tudo assumir o compromisso de honrar seus próprios valores, sejam eles quais forem: sociais ou financeiros, democráticos ou oligárquicos, republicanos ou privados e lutar por eles! Como em todas as mitologias do mundo o momento em que a luz aparece tudo fica às claras, inclusive as lutas sociais que sempre foram travadas, embora disfarçadas e manipuladas por um sistema midiático de massa que é financiado por quem não quer que essas disputas apareçam. Mas esse é o mesmo sistema que cria redes sociais e celulares que gravam e fotografam e uma interface entre eles. Como veremos adiante, grandes sistemas complexos se equilibram. Nessa equilibração é preciso posicionar sua arca e remar. Como dizia Joseph Campbell: "Siga sua bem-aventurança".


A arca do "líder" está afundando
Outra questão importante para a nossa mídia de massa é a figura do “líder”. Um dos maiores vícios da nossa cultura contemporânea é a busca desenfreada por um "líder". Sinal claro dessa necessidade é que parte considerável do mercado de treinamentos está abarrotada com cursos e oficinas de "liderança".

Essa necessidade patológica por uma liderança obedece a um padrão muito particular da nossa sociedade de hiperconsumo. A cultura ocidental contemporânea necessita de um sujeito ideal médio tanto quanto de um sujeito ideal superlativo. O sujeito ideal superlativo, o tal “líder”, está com todas as características que vemos como ideais e valores em voga na atualidade, a moda empresarial do sujeito “pró-ativo”, “competitivo”, “agressivo” e todos os demais valores com os quais já estamos familiarizados a ponto de engasgar. Já o sujeito ideal médio é o sujeito eternamente consumidor, porque eternamente carente. Quanto maiores as dimensões das carências do sujeito médio, maior a gama de produtos, idéias, modas ele estará interessado a suprir pelo consumo. 

A sociedade neoliberal necessita do sujeito carente e amedrontado. Mas mais do que isso, a sociedade neoliberal contemporânea necessita do sujeito essencialmente imaturo: emocionalmente, psicologicamente, moralmente, socialmente imaturo. Incapaz de lidar com extremos de diferença de pensamento, crença e comportamento - ou seja, intolerante, agressivo e reativo - e incapaz de lidar com extremos de vivência emocional ou psíquica - ou seja, consumidor constante da cada vez mais farta química farmacêutica que impede ou suprime a maturação natural dos conflitos e dores do inconsciente. Somente este sujeito tenso, comprimido e atomizado, de fraca formação de caráter, é capaz de consumir eternamente, porque somente ele pode ser convencido, periodicamente, de que não é ajustado, desejado, amado, hábil, apto, capaz. 


Tsunamis primordiais e afinamento energético

O problema é que o sistema psíquico individual, assim como os sistemas sociais, resistem a qualquer absoluto e reagem a isso. É como um grande tsunami que amplia enormemente a faixa de areia de uma praia antes de chegar e arrasar com tudo, porque está "concentrando energia" no pólo oposto.

Da mesma forma como uma multidão cantando um hino nacional num estádio, uma sociedade se "afina" através dos seus conflitos internos e aumenta a quantidade de energia – e as possibilidades de ação! - dentro do sistema à partir da inclusão de novos participantes. O afinamento pode ser observado através da carga afetiva que se concentra e se constela sobre alguns centros gravitacionais hoje em dia. Por exemplo seria difícil para qualquer pessoa negar que o centro energético da concentração dos brasileiros está, através das manifestações nas ruas, se deslocando do eixo "novela-futebol-versão oficial" para o eixo "manifestações-direitos fundamentais-versões não-oficiais". 


A sedução do "não-oficial"

Nesse momento qualquer tentativa de cooptação das manifestações e suas reivindicações por um grande grupo que se outorgue uma posição de "liderança" será rechaçado pela própria manifestação. Dessa forma nem eu, nem você, nem um partido e nem um "líder" ou "representante" pode cooptar o caos e tomar as rédeas dele a curto prazo.

O que podemos fazer, individualmente e em pequenos grupos, é influenciar ao máximo através dos nossos atos pessoais ou associados. Num mundo de imagens editadas, de vídeos editados, de coberturas midiáticas editadas, só os atos pessoais, no "aqui e agora" (do qual fugíamos loucamente na nossa sociedade de projeção na TV, filme, computador etc), só nossa atuação presente e consciente pelo que nós acreditamos que seja o melhor é o que efetivamente vale. E vale muito!


Trapacear o trapaceiro

O que me parece que temos conseguido até o momento foi operar duas inversões incríveis: revertemos o medo e revertemos o protagonismo. Fizemos uma reversão do medo estrutural que a cultura do consumo necessitava disseminar de forma difusa entre nós para que consumíssemos cada vez mais. Agora os governantes estão reagindo motivados pelo medo que têm sentido das manifestações e o protagonismo, ainda que difuso e confuso, está no “mar de gente”.


Uma aposta

De qualquer forma essa incerteza e insegurança íntima que a imagem do "caos primordial" nos traz é justamente o que precisamos, no momento em que precisamos, para nunca fazer o que estamos condicionados e adestrados para fazer: deixar que pensem e decidam por nós. O que temos conseguido é aumentar a autonomia, a ação, a responsabilidade e a consciência política. Esses são os atributos que ampliamos em qualquer processo de amadurecimento. Estamos amadurecendo e é possível que esse grande útero aquoso das manifestações dê à luz uma ou várias novas formas de organização política. Eu sinceramente desejo e luto para que seja uma mais humana e democrática do que a que ainda estamos tendo.

Renato Kress

Diretor do Instituto ATENA

terça-feira, 11 de junho de 2013

Estratégia social XLVIII: Nunca perder o controle

Baltasar Gracián: Grande ênfase deve pôr a prudência em não perder o controle. Assim se portam os grandes homens, pois a magnanimidade dificilmente se abala. As paixões são os humores da alma, e qualquer excesso indispõe a prudência. Se a moléstia sai pela boca, sua reputação estará em perigo. Tendo completo domínio de si próprio na prosperidade como na adversidade, ninguém irá censurá-lo, mas admirá-lo.

ATENA: Perder o controle é sair do eixo de forma desestabilizada. Ampliar a zona de ação das nossas potencialidades e talentos é, também, ampliar nossa consciência sobre quem somos, sobre o poder e a responsabilidade que temos perante os usos desse poder. Perder o controle é ampliar essa ação de forma desordenada, imprudente ou irresponsável. Um tempo de reestruturação interna é necessária, em todas as fases e mudanças da vida e é interessante que essa reestruturação seja pessoal antes de social, íntima antes de extrovertida. Perder o controle não é só arriscar cair no ridículo, mas principalmente regredir o nível da mente e dos atos, sujeitando-nos a todas as formas de punição direta ou indireta. Conheça seus pontos vulneráveis e fortaleça-os, um a um. Fortaleça também toda a arquitetura emocional capaz de sustentar teu ânimo. Lembre-se de que - ainda que em alguns contextos possa ser interessante teatralizar um pouco algumas respostas - nunca é interessante perder-se de si mesmo.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Estratégia Social XLVII: Saber Escolher

Baltasar Gracián: Quase tudo na vida depende disso. São precisos bom gosto e julgamento agudo: Inteligência e capacidade não bastam. Não existe perfeição sem discernimento e seleção. Estão envolvidos dois talentos: escolher e escolher o melhor. Muitos de inteligência fértil e arguta, julgamento rigoroso, instruídos e bem informados se perdem na hora de escolher. Sempre escolhem o pior, como se fizessem questão de errar. Saber escolher constitui uma das maiores dádivas celestes.

ATENA: O poder do arbítrio é um poder criativo. Escolhas criam realidades a partir das quais novas escolhas e realidades podem se descortinar. Tudo o que temos é fruto das nossas escolhas, mesmo a inércia e a dúvida, a incerteza e inação são escolhas pelas quais teremos de responder ao lidarmos com a realidade que nos cerca. Lembre-se: Seu nível de reconhecimento é diretamente proporcional ao seu nível de envolvimento! Envolva-se e envolva, seduza seu destino, desenvolva-se! 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Dinâmicas entre estratégia e tática

Quando se tem o desejo de treinar ou instruir pessoas é imprescindível que se atente ao fato de que é necessário  adquirir conteúdo. Conhecer e aprender, com tudo e com todos, implica tanto numa postura disciplinada em horas de leituras coordenadas, quanto em humildade, para que saibamos aprender com tudo e com todos a todo o tempo. Bons e maus exemplos são fontes idênticas de aprendizado. Desperdiçar conhecimento ou julgar-se tão sábio a ponto de não precisar conhecer mais nada é que são os únicos verdadeiros inimigos do crescimento e da sabedoria.

Aprendizado
Lembro-me de uma anedota budista que contava que num mosteiro havia um cozinheiro muito mal educado, rude com os monges, teimoso e que cozinhava muito bem ou muito mal quando lhe convinha. Um dia esse cozinheiro pediu ao monge mestre, com quem vivia tentando criar atritos, para tirar férias de um ano, após as quais ele decidiria se voltaria ou não ao mosteiro. O monge mestre levou semanas para aceitar a proposta e ficou genuinamente triste quando o cozinheiro se foi. Vendo a tristeza do mestre um de seus discípulos perguntou: "Mestre, porque está tão triste com a ida do cozinheiro, ele era um péssimo cozinheiro, irritante e vivia criando intrigas entre os monges, é melhor que tenha partido mesmo!" Ao que o mestre respondeu: "Foi se embora meu maior mestre de paciência e tolerância."

Alavancas e empurrões
Quando estamos desenvolvendo uma estratégia, para o fim que seja, necessitamos de pontos de apoio, um fundamento real e confiável para o início da ação. Em geral muitos erros em estratégia ocorrem quando não nos damos conta de que esse fundamento deve ser uma alavanca para o início da estratégia e não para todo o percurso do desempenho dela, o que chamamos de "campo tático". A tática ocorre ao longo do tempo decorrido entre a formulação da estratégia e o ato de alcançar a finalidade para a qual a estratégia foi desenvolvida. Basicamente tática são as manobras possíveis dentro do contexto da "batalha", no desenrolar dos acontecimentos postos em ação pela estratégia.

Estratégia e tática, ovos e galinhas
O ideal é que a estratégia, o planejamento e a antecipação, a observação dos atores e motivações no campo de nossos interesses, venham antes da tática, do entregarmo-nos a esse mesmo campo e mergulharmos no cotidiano intempestivo e improvável da batalha. Acontece que nem sempre temos tempo, no turbilhão da vida, de planejar a execução de nossas atividades com a melhor das antecipações e meditações. Muito da arte da vida está no improviso também. Às vezes várias táticas diferentes e disfuncionais nos fazem perceber a importância de estabelecer uma boa estratégia. Nesse caso, em geral, as táticas falhas nos ajudam a mapear os passos dentro do planejamento estratégico. Nesse caso a tática antecede a estratégia.

No caso clássico a estratégia é quem tem a primazia. Antes nos preparamos e nos treinamos, desenvolvemos os atributos, capacidades e comportamentos necessários para passar por uma determinada fase de nossa vida ou para alcançar um determinado ponto ou meta em nossa carreira ou empresa e só então mergulhamos efetivamente no "calor da batalha". Em geral tendemos a ver a relação entre a estratégia e tática dessa forma.

Nem lá nem cá, acolá
A terceira forma de trabalhar é integrar essas duas vertentes reestruturando a estratégia de acordo com as respostas obtidas pela tática ao longo do caminho e repensando as manobras táticas sem perder de vista os parâmetros pensados pela estratégia. Criar uma tensão reconstrutora entre os dois é, a meu ver, a melhor forma de lidar com um universo complexo, como em geral são os universos reais, que envolvem seres humanos, suas motivações, interesses e valores.

Apego e dinâmica
É comum que nos apeguemos. Faz parte da natureza do ser humano se apegar àquilo que de alguma forma o sustenta ou sustenta a imagem de quem ele é. Por isso que é importante não nos identificarmos subjetivamente com a estratégia (ou com a tática), termos a consciência clara de que "eu ajo", ou "eu planejo" são diferentes de "eu sou".

Explico melhor. Quando nos identificamos com algo -  "eu sou analista", por exemplo -  tendemos a nos apegar àquela identidade e a depender dela para podermos dar sentido a nossas ações no mundo. Se no identificamos com uma determinada estratégia geramos dois problemas: precisamos que ela se sustente indefinidamente caso contrário ficaremos sem referenciais para quem somos e, também, não vemos outras possibilidades de linhas estratégicas, não vemos todo o amplo espectro de possibilidades de estratégias diversas.

Identificação e desapego
O primeiro problema nos leva a não chegarmos no fim para o qual a estratégia foi proposta. Afinal, se "eu sou aquele que busca X" terei perdido minha identidade no momento em que encontrar "X", e perder a identidade é um problema gravíssimo! Perdemos todos os referenciais nesse momento e abrimos espaço para uma grande depressão, por exemplo. Com certeza conhecemos histórias de pessoas que passaram por isso.

Os "campos de batalha" onde operaremos nossa estratégia e tática são, em geral, campos complexos, com vários fatores a serem considerados, então é interessante aprendermos a nos desapegar de um fundamento ou de uma "raiz" da estratégia ou mesmo da tática a fim de podermos passar a nos sustentar no fundamento seguinte, que naturalmente vai aparecer ao longo do desenrolar das ações. Só podemos ter alguma noção das alternativas possíveis se não nos identificarmos com nenhuma delas em específico. Obviamente não estou falando de "não ter identidade", mas de perceber que nossa identidade está acima e além das estratégias possíveis.

O segredo é a alma do negócio
Não existem casos ideais nem fórmulas perfeitas. Todas as três posições acima: tática que gera estratégia, estratégia que gera tática ou ambas se retroalimentando são possíveis e aplicáveis a sujeitos e contextos diferentes. Cabe a cada estrategista saber identificar o melhor momento para cada uma. Mas independente dessas possibilidades todas, o mais importante é que esses processos internos sejam tão claros para cada um de nós quanto obscuros para todos os demais. As melhores estratégias e táticas são as que possuem pouca previsibilidade. É o que chamamos de "agendas ocultas". Deixo vocês com a sabedoria da cultura interna da máfia italiana: "O capo conta muito a poucos, pouco a muitos e tudo a ninguém".

Texto: Renato Kress

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Estratégia Social XLVI: Nunca perder o respeito de si mesmo

Baltasar Gracián: Nem condescender demais consigo próprio. Que sua integridade seja diretriz de sua retidão. Deva mais à severidade do seu próprio julgamento que a todos os preceitos externos. Evite o indecoroso, não devido ao julgamento severo dos outros, mas em respeito à sua sensatez. Chegue a temer a si mesmo e não necessitará como preceptor imaginário de Sêneca.

ATENA: Ser o centro doador de sentido para a tua realidade, a fonte de toda decisão e ação, o arcabouço de cada planejamento, o fim último ao qual tornarão a vergonha ou o mérito. Arcar com a responsabilidade da própria vida, não projetá-la em mídia, moda, cultura, família, nada que não seja sua própria estrutura, seu próprio caráter, é formar-se Homem. Só assim é possível mover-se para além dos desmandos alheios, onde só as crianças se escondem atrás de posturas como "estava só seguindo ordens", "o que iriam pensar de mim?" e outros. Definir o próprio centro e criar o próprio destino, essa é a tarefa do homem. Daquele que for sábio o suficiente para temer o peso da própria obra do dia, do mês, do ano ou da vida inacabada sobre seus ombros mais do que o sorriso condescendente do aplauso ou da crítica alheia.

Renato Kress

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Estratégia Social XLV

Homem criterioso e observador

Baltasar Gracián: Domina as coisas e não deixa que as coisas o dominem. Sonda as maiores profundezas e disseca os problemas com perfeição anatômica. Só de ver alguém já o compreende e avalia sua essência. Possui grande poder de observação, decifra o que se acha mais oculto. Observa com argúcia, concebe sagazmente, argumenta sabiamente: não há nada que não possa descobrir, notar, apreender, entender.

ATENA: Uma das maiores estratégias de dominação com que nos deparamos no mundo do trabalho hoje em dia é a balela maniqueísta entre a "zona de ação" e a "zona de conforto". Essa dicotomia barata que artificialmente cria uma contradição entre "ação" e "pensamento" serve não só para incutir o sentimento de culpa sobre quem esteja refletindo, pensando ou planejando suas ações, mas principalmente para que confortavelmente nos abstenhamos de pensar, de refletir nossas ações em dois pontos: base e meta. Quando não conhecemos a base, o fundamento de nossas ações, somos dominados por quem nos dita esses fundamentos, quando não conhecemos a meta, o desígnio último de nossas ações, não possuímos controle ou consciência prática sobre nossos atos. É uma estratégia rasa, simples e rasteira de dominação, manipulação e controle incutir esse tipo de dicotomia na cultura corporativa. Se ação sem pensamento é perda de energia e pensamento sem ação é perda de tempo, procure manter-se na zona de interação, jamais deixe de pensar, jamais deixe de agir, juntos.

Renato Kress