Sou rato de livraria. Confesso. Quando saio para algum cinema desses cujo circuito fica em shoppings (me permito ver blockbusters tanto outras formas de cinema), não me nego ao prazer de passear pelas livrarias - geralmente infelizmente apenas uma ou duas - que existem por lá. São universos condensados em páginas, prensados em papel que, uma vez abertos, correm o sério risco de abrir nossas mentes também. Quando procuro por livros quero saber ao menos um pouco da biografia do autor. Quem é aquele sujeito ou aquela digna senhora risonha que pretende que eu compre um bloco impresso de suas idéias, que eu tenha intimidade com elas a ponto de levá-los no colo até a rede da varanda para mergulhar no seu universo interior? Preciso me interessar pelo tema, sem dúvida, mas observo sempre - vícios da profissão - com que interesse aquela obra foi escrita, qual o pano de fundo do autor.
"Quem é que está falando?"
Acontece a mesma coisa com os treinamentos. Quando procuramos treinamentos, quando buscamos cursos e palestras que possam efetivamente agregar conteúdo e conhecimento prático a nossas vidas, buscamos as formações dos que as ministram. Queremos saber em que a palestrante da palestra de "liderança" é formada, qual a experiência do palestrante de "coach" no assunto em que ele está palestrando etc. Toda essa preocupação é extremamente genuína, afinal, teremos uma a três horas do nosso dia dedicadas a escutar o que essa pessoa tem a dizer, sem contar o tempo de translado que muitas vezes acontece também.
Naturalmente pensamos "é bom que seja bom!" e nesse ponto entram os especialistas em marketing pessoal, em luz, câmera e ação para fazer o estudo cromático da palestra, organizar as credenciais, as dinâmicas certas, as falas corretas, as movimentações de palco e tudo o mais envolvidos na atmosfera do treinamento, curso ou palestra. E é justo que assim seja e até esperado.
Intenção, viés, perspectiva
Toda essa preparação é importante seja qual for o tipo de palestra a ser ministrada. O que não se pode é perder de vista o conteúdo da palestra, esquecer o fundamento prático a ser desenvolvido depois dela e ficar fascinado por uma "pirotecnia" momentânea.
Uma palestra deve iluminar novas perspectivas de vida e, ao contrário do show, cuja essência se encerra em si mesmo e no ato de estar presente no momento - quase mágico - em que ele ocorre, a palestra deve, ao menos, incutir dúvidas interessantes, demolir algumas certezas infantis, alicerçar (mesmo que de leve) alguns novos pontos de vista e trazer um gostinho de novidade para depois dela. Esse ano decidi que só vou a shows se eu puder realmente dançar neles ou ouvir a música e me perder nela. Palestra eu vou para aprender algo novo, para conhecer novas perspectivas e profissionais interessantes. Talvez até para uma parceria, mas não para um show.
Quando vou a uma palestra sobre treinamentos ou coaching compreendo que vá ouvir muita coisa de que já estou ciente a algum tempo já que trabalho na área, mas espero ao menos ouvir algo em torno de 20 a 30% de novidade, afinal pelo menos é uma pessoa nova falando! Que o assunto não seja novo é compreensível e esperado muitas vezes, mas ao menos o viés, a perspectiva, a intenção, o foco! Gosto quando me pego rindo de canto de boca no meio de uma apresentação porque o palestrante uniu duas idéias que não me eram tão particularmente similares, gosto quando me pego aplaudindo de pé genuinamente. E aplaudo e sinto meu dia ganho com essas situações. E fico imaginando o que posso fazer, onde posso trabalhar para que meus ouvintes tenham sempre essa impressão das minhas palestras, sejam completamente leigos ou colegas de profissão.
Showman, mas com conteúdo!
Nada contra pessoas que sejam naturalmente engraçadas e divertidas no palco, que tenham intimidade e naturalidade com a audiência, isso é maravilhoso! É até esperado, se considerarmos os treinamentos de palco, rapport e técnicas de comunicação que temos antes de virarmos trainers em programação neurolingüística (pnl), por exemplo. Mas a forma não deve suprimir o conteúdo. O conteúdo de um palestrante, suas leituras, suas experiências, sua trajetória e descobertas, deve ser um rio caudaloso jorrando pela forma. Seja a forma de um coach, com perguntas poderosas e significativas para a platéia, instigando e fazendo refletir, seja a forma de um treinador em pnl com dinâmicas, técnicas e conhecimentos específicos da área. Quem já viu uma palestra do Anthony Robbins por exemplo sabe do que estou falando. Ou do Tom Best. Modelos completamente diferentes de palestrantes que prendem pela forma e pelo conteúdo. Um com show externo, outro com show interno.
Como um caldeirão criativo, o conteúdo do palestrante necessita ser claramente superior ao que possa caber no tempo da palestra. Quando, ao final de uma palestra, parece que o palestrante esgotou seus conhecimentos ou suas metáforas, que já está se tornando repetitivo e cansativo, ou respondendo perguntas através de frases feitas ou mantras superficiais, qual será meu interesse em fazer um treinamento com ele? Ou comprar seu livro ou querer conhecer melhor seu método? É importante que ele tenha não só conhecimento na área sobre a qual palestra, mas um certo domínio de uma cultura geral que o proporcione abarcar outros mapas quando estiver palestrando.
Conhecer mil mapas
Faz parte de uma das pressuposições básicas da pnl "o mapa não é o território", ou seja: minha representação do mundo (mapa) não é o mundo (território), de forma que a melhor maneira de garantir que minha mensagem seja passada para as mais diversas pessoas (e nunca sabemos quem estará presente) é falar através de diferentes metáforas, de diferentes campos do conhecimento. Por isso bons palestrantes de pnl são fenomenais, porque compreenderam que precisam ser internamente ricos para que possam ser melhor compreendidos e que se tornem mais interessantes, como pessoas e como profissionais.
Importância estratégica da cultura
Nunca confiei em comentadores. Concordo com Nietzsche quando ele diz: "...os intermediários falsificam quase involuntariamente o alimento que transmitem: além disso, como recompensa de sua mediação, pedem demais para si: interesse, admiração, tempo, dinheiro e outras coisas, de que ficam, portanto, privados os espíritos originais e produtivos.". Esse é mais um dos motivos pelos quais só trabalho com criações minhas. Não vejo nada mais enfadonho que uma palestra de um treinador falando sobre o fantástico desenvolvimento da idéia X do indivíduo Y. A menos que o indivíduo em questão esteja em outro plano existencial eu vou querer aprender com ele, diretamente, e não com o comentador. Aplico no trabalho o que aplico nos estudos. Leio direto os filósofos, se possível em suas línguas originais, depois posso até me interessar por um orientador, mas nenhum nunca teve a paixão e a riqueza que o original, até hoje.
Me importa a pessoa do palestrante, sua experiência pessoal com o que está veiculando. E para que a pessoa do treinador se faça ouvir para além da "pirotecnia" possível em uma palestra, é natural que se torne um ser que desafia minhas concepções de mundo, que me instiga a ir além nas minhas descobertas, que me enriqueça pelo simples fato de estar ali se comunicando comigo, enfim, um ser humano interessante.
"Quem abrir um livro de um filósofo de verdade, de qualquer época, de qualquer país, Platão ou Aristóteles, Descartes ou Hume, Malebranche ou Locke, Spinoza ou Kant, sempre encontrará um espírito rico em pensamentos, que possui o conhecimento e inicia no conhecimento, e que, sobretudo, se esforça sempre sinceramente para comunicar-se com os outros; por isso ele recompensa imediatamente seu leitor, a cada linha, pela fadiga de ler." - Arthur Schpenhauer
Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
www.institutoatena.com
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