Os gritos e os silêncios
Tenho observado com atenção a dificuldade do meio acadêmico em geral em
lidar com os fenômenos sociais contemporâneos. Sociólogos, antropólogos,
cientistas políticos, filósofos, historiadores, geógrafos, psicólogos sociais,
todos parecem ter uma reticência enorme em relação às manifestações que tomaram
conta de vários países ao redor do mundo. Viciados que estão em rotular,
analisar e tentar, por esses processos, adquirir alguma forma de controle sobre
os fatos sociais, grande parte do universo acadêmico se vê perdido, sem
referenciais, sem perspectiva diante do que, quando muito, identificam com o
"caos". A academia se estruturou para analisar a ordem criando novas
ordens e relegou como párias a maior parte dos que se esmiuçaram no estudo do
caos. Seria preciso um especialista no caos para analisar certas perspectivas
que se abrem a nossa frente nesse momento. Como não conheço nenhum, recorro às
imagens de "caos" que conheço através das diversas mitologias do
mundo em busca de possibilidades e padrões. Descortinam-se horizontes
interessantes para os nossos próximos dias.
Em toda parte, em todo tempo, as mais diversas ordens vieram do caos
"E o espírito de Deus se movia sobre a face das águas" -
Gênesis 1:1, Bíblia
No mito de criação egípcio (aproximadamente 2600a.C.), antes dos deuses
passarem a existir havia apenas um abismo escuro e aquoso chamado Nun. Na
mitologia mais antiga de que temos notícia, a Suméria (aproximadamente
5300a.C), a criação e o panteão surgiram pacificamente do mar original, também
conhecido como a deusa Namu. Na Pérsia (atual Irã) o caos primordial era
associado a Angra Mainyu dois mil anos antes da Era Cristã. Nos textos sagrados
indianos (Brahmanas, Puranas e no Mahabharata) uma das mais antigas versões
para o nascimento do universo é o movimento que duas castas de seres celestiais
fazem sobre o oceano cósmico, identificado com o caos primordial.
Havia algo sobre o qual o todo-poderoso criador da ordem semita
caminhava, "as águas". Antes da existência dos diversos panteões
egípcios, havia também algo descrito como "aquoso", talvez da mesma
natureza que o "mar primordial" dos sumérios, algo "líquido e
indefinido" que, posteriormente, foi identificado, pelos novos criadores
da ordem na Pérsia, como negativo, como o mal absoluto. Outros povos, entre
eles os indianos, descobriram que essa "grande massa aquosa" poderia
ser, também, uma fonte de ordem. O movimento do caos teria a potência criadora
da ordem. Esse é um dos pontos principais do "caos primordial": ele
pode tudo, inclusive gerar uma nova ordem!
O vazio: o eco que encontra o oco
Muitos tentam identificar um enorme vazio nesses movimentos, um vazio de
perspectivas, um vazio de requisições, um vazio político gerado pela descrença
estrutural na nossa cultura política contemporânea. De alguma forma está
patente que o sistema de representatividade política têm se entrincheirado para
representar politicamente (nos jogos de interesses e necessidades que compõem a
política em todos os tempos e em todos os lugares) aos grupos que melhor se
organizam em prol dos seus interesses, sejam eles legítimos ou ilegítimos.
Ocorre que os grupos mais bem organizados acabam formando pequenas máfias que
controlam seus "nichos" de mercado através do financiamento e da
compra direta ou indireta de agentes do poder público nos mais variados graus
hierárquicos. É a cultura política da corrupção. Que vem se tornando cada vez
menos “corrupta” e cada vez mais estrutural. Explico.
É preciso corromper o corrupto, trapacear o trapaceiro
Para que haja corrupção é necessário que alguém se "corrompa",
que possua um caráter específico que tenha sido deturpado por um processo
consciente de escolhas em prol de um interesse diverso do interesse que
originalmente o caracterizava. Para que um governante ou um funcionário público
sejam corrompidos é necessário que ele estabeleça um compromisso e o desonre ao
longo de sua atuação. Não é o que temos hoje em dia.
O que temos hoje em dia são homens públicos - eleitos supostamente pelo povo, já que estar em um cargo político não é ser um líder ou representante do povo, mas sim ser o vencedor de uma disputa de interesses que aconteceu dentro de um partido, um grupo seleto, que escolheu, segundo seus interesses privados, os candidatos que nós votaremos - comprometidos exclusivamente com interesses privados desde antes de suas eleições enquanto homens públicos.
O que temos hoje em dia são homens públicos - eleitos supostamente pelo povo, já que estar em um cargo político não é ser um líder ou representante do povo, mas sim ser o vencedor de uma disputa de interesses que aconteceu dentro de um partido, um grupo seleto, que escolheu, segundo seus interesses privados, os candidatos que nós votaremos - comprometidos exclusivamente com interesses privados desde antes de suas eleições enquanto homens públicos.
Os grupos de interesse privado têm se apropriado constantemente dos
cargos públicos, colocando neles seus representantes diretos. Não sei até que
ponto o homem no cargo é, pessoalmente, corrupto ou o homem, por sua ação
comprometida com os financiadores de sua campanha, corrompe o cargo que, por
definição, trata da gestão dos bens, decisões e finanças públicas e não
privadas. Temos visto defensores de interesses privados se apropriando
claramente de cargos públicos, corrompendo a lógica desses cargos enquanto honram
com seus compromissos pessoais e seus interesses particulares. Parte desse
movimento caótico nas ruas está direta ou indiretamente ligado a romper essa
cadeia por um segundo movimento, também natural, da dinâmica do caos: a
aparição luz.
Tudo junto e misturado
O caos - que é o que genial, perversa e maravilhosamente temos nas ruas
hoje em dia - não é só o vazio. Ele é a potencialidade de tudo! Inclusive
do vazio! Através do posicionamento da população nas ruas a situação política
dos países atingidos por esse "caos" pode piorar muito com a ascensão
ao poder de grupos extremistas - lembrando que no espectro da política os
extremos de direita e esquerda se tocam no horizonte -, pode melhorar muito -
observando o acréscimo intenso de consciência, interesse e preocupação política
que a disseminação de informações pela via virtual tem gerado – ou pode não dar
em nada - reestruturando uma mudança superficial que acalmará as águas no
caldeirão em ebulição, pelo menos por um tempo. Esse é o caldeirão
contemporâneo, o estado de ebulição primevo e origem de tudo o que há e haverá,
de todas as potencialidades. Pode ser o vazio sim! Pode ser qualquer coisa!
Perspectivas do caos
"O inferno são os outros" - Jean Paul Sartre
Em termos políticos, policiais e acadêmicos o caos é identificado como tudo aquilo que eu não controlo. Tudo o que foge do meu controle é caótico e, observando as histórias das religiões e mitologias pelo mundo, tudo o que é caótico acaba sendo identificado como "negativo", "cruel", "perverso" etc e implica numa postura agressiva em busca de retomar o controle da ordem anterior. Em certo ponto essa análise natural para quem se coloca da perspectiva da "ordem" está muito certa. Afinal de contas, se considerarmos a passagem do tempo e as mudanças sociais que inevitavelmente ocorrem e ocorrerão em todas as ordens constituídas, para quem está se identificando com a ordem anterior a nova ordem que tenta se impor é sim negativa - na medida em que nega partes importantes da ordem até então dominante -, é sim cruel - porque pauta-se por um sistema de valores diferente do até então vigente - e é também perverso - porque tenta perverter um sistema cultural para que se reestruture sobre novos padrões.
Mas o que há de mal em perverter um sistema pervertido?
Dilúvios e recomeços
Navegar é preciso
Vejo no mar primevo das manifestações muitas arcas, muitas causas querendo ser salvas, querendo sobreviver a esse gigantesco tsunami humano de reivindicações, gostos, desejos, representações, preferências e exigências. Aí é que está a beleza: Não temos, individualmente, como determinar o fim último das manifestações como um todo. O que podemos fazer é abdicar do controle ilusório que a análise dos movimentos nos possibilitaria e buscar a nossa arca, a nossa ínfima possibilidade de representação e influência! É preciso antes de tudo assumir o compromisso de honrar seus próprios valores, sejam eles quais forem: sociais ou financeiros, democráticos ou oligárquicos, republicanos ou privados e lutar por eles! Como em todas as mitologias do mundo o momento em que a luz aparece tudo fica às claras, inclusive as lutas sociais que sempre foram travadas, embora disfarçadas e manipuladas por um sistema midiático de massa que é financiado por quem não quer que essas disputas apareçam. Mas esse é o mesmo sistema que cria redes sociais e celulares que gravam e fotografam e uma interface entre eles. Como veremos adiante, grandes sistemas complexos se equilibram. Nessa equilibração é preciso posicionar sua arca e remar. Como dizia Joseph Campbell: "Siga sua bem-aventurança".
A arca do "líder" está afundando
Outra questão importante para a nossa mídia de massa é a figura do “líder”.
Um dos maiores vícios da nossa cultura contemporânea é a busca desenfreada por
um "líder". Sinal claro dessa necessidade é que parte considerável do
mercado de treinamentos está abarrotada com cursos e oficinas de
"liderança".
Essa necessidade patológica por uma liderança obedece a um padrão muito
particular da nossa sociedade de hiperconsumo. A cultura ocidental
contemporânea necessita de um sujeito ideal médio tanto quanto de um sujeito ideal
superlativo. O sujeito ideal superlativo, o tal “líder”, está com todas as
características que vemos como ideais e valores em voga na atualidade, a moda
empresarial do sujeito “pró-ativo”, “competitivo”, “agressivo” e todos os
demais valores com os quais já estamos familiarizados a ponto de engasgar. Já o
sujeito ideal médio é o sujeito eternamente consumidor, porque eternamente
carente. Quanto maiores as dimensões das carências do sujeito médio, maior a
gama de produtos, idéias, modas ele estará interessado a suprir pelo
consumo.
A sociedade neoliberal necessita do sujeito carente
e amedrontado. Mas mais do que isso, a sociedade neoliberal contemporânea
necessita do sujeito essencialmente imaturo: emocionalmente, psicologicamente,
moralmente, socialmente imaturo. Incapaz de lidar com extremos de diferença de
pensamento, crença e comportamento - ou seja, intolerante, agressivo e reativo
- e incapaz de lidar com extremos de vivência emocional ou psíquica - ou seja,
consumidor constante da cada vez mais farta química farmacêutica que impede ou
suprime a maturação natural dos conflitos e dores do inconsciente. Somente este
sujeito tenso, comprimido e atomizado, de fraca formação de caráter, é capaz de
consumir eternamente, porque somente ele pode ser convencido, periodicamente,
de que não é ajustado, desejado, amado, hábil, apto, capaz.
Tsunamis primordiais e afinamento energético
O problema é que o sistema psíquico individual,
assim como os sistemas sociais, resistem a qualquer absoluto e reagem a isso. É
como um grande tsunami que amplia enormemente a faixa de areia de uma praia
antes de chegar e arrasar com tudo, porque está "concentrando
energia" no pólo oposto.
Da mesma forma como uma multidão cantando um hino
nacional num estádio, uma sociedade se "afina" através dos seus
conflitos internos e aumenta a quantidade de energia – e as possibilidades de
ação! - dentro do sistema à partir da inclusão de novos participantes. O
afinamento pode ser observado através da carga afetiva que se concentra e se
constela sobre alguns centros gravitacionais hoje em dia. Por exemplo seria
difícil para qualquer pessoa negar que o centro energético da concentração dos
brasileiros está, através das manifestações nas ruas, se deslocando do eixo
"novela-futebol-versão oficial" para o eixo
"manifestações-direitos fundamentais-versões não-oficiais".
A sedução do "não-oficial"
Nesse momento qualquer tentativa de cooptação das
manifestações e suas reivindicações por um grande grupo que se outorgue uma
posição de "liderança" será rechaçado pela própria
manifestação. Dessa forma nem eu, nem você, nem um partido e nem
um "líder" ou "representante" pode cooptar o caos e tomar
as rédeas dele a curto prazo.
O que podemos fazer, individualmente e em pequenos grupos, é influenciar ao máximo através dos nossos atos pessoais ou associados. Num mundo de imagens editadas, de vídeos editados, de coberturas midiáticas editadas, só os atos pessoais, no "aqui e agora" (do qual fugíamos loucamente na nossa sociedade de projeção na TV, filme, computador etc), só nossa atuação presente e consciente pelo que nós acreditamos que seja o melhor é o que efetivamente vale. E vale muito!
O que podemos fazer, individualmente e em pequenos grupos, é influenciar ao máximo através dos nossos atos pessoais ou associados. Num mundo de imagens editadas, de vídeos editados, de coberturas midiáticas editadas, só os atos pessoais, no "aqui e agora" (do qual fugíamos loucamente na nossa sociedade de projeção na TV, filme, computador etc), só nossa atuação presente e consciente pelo que nós acreditamos que seja o melhor é o que efetivamente vale. E vale muito!
Trapacear o trapaceiro
O que me parece que temos conseguido até o momento foi operar duas inversões incríveis: revertemos o medo e revertemos o protagonismo. Fizemos uma reversão do medo estrutural que a cultura do consumo necessitava disseminar de forma difusa entre nós para que consumíssemos cada vez mais. Agora os governantes estão reagindo motivados pelo medo que têm sentido das manifestações e o protagonismo, ainda que difuso e confuso, está no “mar de gente”.
Uma aposta
Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA