Você está satisfeito? Melhor: Como você se sentiria se estivesse? Satisfeito ou incomodado? Alcançar a satisfação é entrar no que o discurso do mercado chama de “zona de conforto”. Essa tal “zona de conforto” opõe-se, no discurso pseudo-administrês/economês, à uma outra tal “zona de ação”, onde (em teoria) tudo é criado, pensado, produzido. Nessa lógica perversa, sentir-se satisfeito, feliz, realizado, curtir o mérito ou o êxito pelos seus esforços é passível de culpa, penalização e ridícularização.
Ser insatisfeito é pertencer
A insatisfação é um estado de carência, de falta de alguma coisa, cujo suprimento se exige. Geralmente é uma expressão do que o ser humano precisa absolutamente para conservar e desenvolver a sua vida.
Existem necessidades primárias, fisiológicas, como a alimentação, a reprodução, a excreção, o sono e as necessidades secundárias, adquiridas ao longo da vida como necessidade de conforto, pertencimento social e afeto. Alguns chamam de necessidades instintivas e espirituais, outras de primitivas e intelectuais. A lógica é a mesma.
Saciedade, satisfação ou felicidade?
A saciedade é o estado de quem se saciou, é a fartura, é a satisfação plena de um apetite qualquer que nos deixa a sensação de estarmos repletos daquela questão, daquele ponto, daquele objeto. Podemos sentir isso claramente no quesito apetite. Não importa o quanto propagandas, diretas ou indiretas possam falar, mostrar ou musicalizar sobre determinado alimento, se estamos realmente satisfeitos, aquilo pode vir mesmo a nos causar nojo, asco, irritação.
A satisfação já opera num grau mais elevado. Está ligada ao contentamento, à alegria, ao deleite, ao aprazimento. Geralmente ocorre como uma sensação de reconhecimento ou recompensa por algum esforço. É uma espécie de retribuição bem coordenada por alguma espécie de mérito.
E a tal felicidade? A felicidade, símbolo máximo dos longos e musicalizados comerciais de banco e companhias de seguro, é um estado de ventura, de grande e inegável contentamento com algum bom êxito ou sucesso ou mesmo com a boa sorte em algum aspecto da vida, cujo sentimento de realização opera em todos os campos e se alastra incluindo e influenciando nossa vida em outras áreas alheias à área em que nos sentimos pela primeira vez “felicitados”.
Se o homem do início do século XX era “um cadáver adiado que procria” (Machado de Assis), o homem contemporâneo é uma felicidade adiada que produz.
A noção de saúde
Em 1948 a Organização Mundial da Saúde redefiniu o conceito de “saúde” para: “estado de completo bem-estar físico, mental e social, não meramente a ausência de doença ou enfermidade.”. Saía de cena o modelo biomédico de uma saúde exclusivamente orgânica, ligada à sobrevivência do indivíduo e entrava em vigor um modelo holístico, em que a – muito falada e pouco definida - “qualidade de vida” se tornava um valor forte para a o indivíduo.
Isso não se deu de forma arbitrária e sem nenhuma ordem crítica ou científica. Os estudos, principalmente nas áreas da psicologia e do comportamento, enfatizavam as relações entre a mente e o corpo. Todo o quadro científico da época era muito propício a essa mudança no conceito de saúde:
. Os estudos sobre “estresse” operados nos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial.
. Os estudos sobre integração e reintegração social
. Os estudos sobre capacidade afetiva de enfrentamento da realidade, seja dentro ou fora do contexto de guerra. (existiam dificuldades dos dois lados).
. Os estudos sobre o “sentido de coerência” interna do sujeito, na direção da narrativa que coordena sua vida. (Antonovsky)
. Os estudos sobre a “sucetibilidade generalizada” (o que chamaríamos popularmente de “cabeça-fraca”). (Marmot, Shipley e Rose)
. Os estudos na área do comportamento organizacional, efetuados por Elton Mayo, Kurt Lewin e Abraham Maslow.
Além da Pirâmide, os estudos de Maslow
Abraham Maslow, que, ao contrário do que ensinam a maior parte dos livros e cursos que se utilizam de forma superficial de sua teoria, nunca criou nenhuma pirâmide hierárquica com os termos que separou e estudou em vida, dizia que a auto-realização – o sentimento de crescer e desenvolver-se como indivíduo – era em si se não o maior, um dos maiores motivadores para o ser humano.
Da mesma forma a contínua tentativa de aumentar o controle sobre o comportamento do indivíduo gera (no ambiente do trabalho, por exemplo) uma rigidez gerencial excessiva que tende fortemente a levar o funcionário à apatia e desinteresse. O ideal, caso desejássemos uma atividade que efetivamente engajasse e motivasse o funcionário, seria operar com algum grau de flexibilidade.
A solução perversa
Com a prova científica de que o controle crescente gera boicote direto ou indireto, a solução do discurso do trabalho – viciado em poder e controle – foi “introjetar” o controle, colocar ele dentro da cabeça do trabalhador, criar uma espécie de fortalecimento de um “superego*” gerencial e cultural do “empreendedor”, do capaz, do potente, do líder, do vencedor. Com o controle operando “a partir de dentro”, com a responsabilidade deixada a cargo do trabalhador, teoricamente, ele poderia sentir-se mais livre para desenvolver seu potencial dentro do que lhe é pedido, das tarefas que tem de executar. Mas o que ocorre efetivamente é que muitas vezes ele perde o sentido do trabalho, se sente cada vez mais desligado do significado do que faz e se torna mais e mais incerto, inseguro e tenso em relação a si e às suas capacidades, afinal, pedir conselho, assumir qualquer dúvida ou insegurança é provar-se indigno do cargo que ocupa, ineficiente, inepto, incapaz, seguidor, inferior. Essa lógica perversa aniquila a saúde mental e física do trabalhador.
Mais do que qualquer processo externo de coerção gerencial, a autocrítica e a autocensura, aniquilam a auto-estima e geram as mais diversas patologias mentais e físicas. Há um provérbio ruandês que diz: “Você pode se distanciar de quem está correndo atrás de você, mas não do que está correndo dentro de você.”
Nenhuma criatividade
O mecanismo é simples e até mesmo antigo. Na Grécia Antiga tínhamos a classe dominante dos “Aristói”, dos aristocratas. “Aristói” é uma palavra grega que vem de “Areté”, que significa “ser o melhor”, “qualidade dos melhores” ou “superioridade”. Daí o termo “Aristocracia” ou “governo dos melhores”, “dos superiores”, “dos líderes naturais” etc. Parece familiar?
Hoje em dia o discurso do trabalho procura unir, de forma perversa, o conceito do Aristói grego, do “melhor”, do “líder”, do “vencedor” ao conceito de mérito. Até aí tudo bem: se um determinado indivíduo efetivamente é mais capaz que seus concorrentes em dado momento, que lhe seja permitido, depois, viver seu mérito e gozar do fruto de seus esforços. Nada mais justo, aliás. O problema real é que há muitos seguidores para um líder, muitos derrotados para um vitorioso, e é nesse ponto que se opera a perversidade da instrumentalização da vergonha dos demais, dos “não vencedores”, dos “não líderes”, dos “não pró-ativos” como forma de dominação introjetada, de dentro para fora.
As exigências absurdas desse super-ego fabricado, catalisador do trabalho e castrador das expectativas de retorno e satisfação é que geram uma insatisfação crescente.
Prisão emocional
Os valores do super-ego do trabalho contemporâneo: combatividade, agressividade, assertividade, competitividade, eficiência, eficácia, controle emocional, pró-atividade e liderança tendem a gerar uma sociedade emocional e psiquicamente imatura, viciada em projetar sua satisfação no futuro, culpabilizada pela satisfação gerada por seus sucessos e dependente das ofertas de pertencimento e sentido de vida disponíveis no Mercado.
Se eu pretendo que minha empresa vá ser estrategicamente dirigida e que prime pela inovação e pela criatividade (a única forma sustentável de ser competitivo), não posso ter funcionários com esse perfil. Não posso admitir novos funcionários com esse perfil e não posso permitir que os antigos permaneçam assim. A única forma para conseguir ir além dessas limitações é treinar meu funcionário para que aja e pense e forma diferente desse padrão e encorajá-lo a se interessar efetivamente pelo que é criado ou oferecido na minha empresa, tendo sempre a noção de que ninguém se interessa a troco de nada e de que alguma troca deve ocorrer dentro da escala de valores, do que é importante, para o meu funcionário. Deve haver alguma espécie de recompensa sem culpa embutida.
Liberdade
O primeiro passo para sair dessa prisão psíquica é olhar para trás e estranhar. Estranhar nossas decisões e os critérios que levaram a elas, estranhar nossos incômodos e as forças que agem por trás deles, estranhar nossa insatisfação e perguntar: Eu estaria realizado se estivesse satisfeito? Ou eu estaria tenso, irritadiço, inseguro, na “zona de conforto”?
Mais importante de tudo é questionar a si mesmo: Meus estudos, minhas horas de dedicação e esforço, minhas noites em claro, foram para que eu vivesse essa tensão eterna entre estar insatisfeito por não ter cumprido com alguma meta ou, por outro lado, estar inseguro, irritadiço e tenso por cumprir determinada meta, pensando que o prazer de se sentir satisfeito é algo pelo qual eu deva sentir vergonha?
No fundo o que mais conta é que a escolha sobre a sua vida é, sempre, sua.
Renato Kress,
Diretor do Instituto Atena
Sobre desenvolvimento do conceito de “eu”, da personalidade e criação de um estado pessoal de recursos para a batalha do dia-a-dia:
A Jornada do Herói
Sobre administração e gestão estratégica:
Estratégia em Ação – módulo básico
Sobre alternativas à lógica perversa do trabalho, estratégias e táticas inovadoras:
A Arte da Guerra Oriental
Sobre Liderança inteligente:
Liderança corporativa e PNL
Superego: Sistema que representa motivos morais (família, comunidade, trabalho). Princípio de moralidade que cerceia e limita nossas condutas. As funções do superego são: estabelecer um sistema de valores e integração do ego-ideal (deveres, exigências, ordenamentos e proibições), direcionar os comportamentos e atitudes por este sistema de valor e, principalmente, excluir atitudes e modos de comportamento que não correspondem ao ideal imaginado através da autocrítica e da autocensura.